20060124

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ALHEAMENTO NA CIDADE 

Buscando inspiração no monocromático azul do tecido que se me opõe neste assento do metro desta metrópole imunda e fantástica que é Barcelona. 

Gosto de me sentir anulado como habitante desta grande metrópole. De me sentir ninguém em especial, de ser normal, um como tantos, outro no meio de outros. Ser mais um desta Metropolis, e se não estivera ou faltara, melhor ainda que nenhuma falta fizesse e nem fosse notada a ausência. Porque gosto de sentir a indiferença com que me presenteiam, e de retribuir esse mesmo desinteresse. Ah, da nulidade como cidadão especial, como é bom ser anónimo, absolutamente incógnito, ser outra ovelha na ruidosa multidão deste rebanho urbano!

Sinto um gosto especial, enquanto utilizo os transportes públicos de Barcelona, pensando em que o fazia simultaneamente com outros milhares de pessoas em diferentes direcções rumo ao seu trabalho, num afã quotidiano e desafeiçoado. Umas rumavam das vastas populosas periferias para trabalhar no maciçamente sobrepovoado centro da cidade, sempre buliçoso, e conspurcado, ocioso também, mas em movimento contínuo, 24 sobre 24 horas. Outros ainda, em menor número que os primeiros, seguiam o destino contrário, indo trabalhar para os subúrbios em sei lá que funções terciárias ou secundárias em que estariam empregados. Quase todos levavam algo que ler, ou o Metro – jornal gratuito diário, comum às metrópoles mundiais - deglutido pela trigésima vez nessa manhã, ou calhamaços que denunciavam muitos como estudantes, ou estrangeiros (como eu, a ler Saramago, com olhares inquisidores perante títulos exóticos como: Manual da Escrita e Caligrafia ou o Ensaio Sobre a Cegueira) e insuspeitos amantes de literatura. Outros ouviam música, inaudível a quem do exterior o tentasse, com auriculares enterrados nos pavilhões auditivos, escondendo invariavelmente - efeito pretendido ou não - a mescla sonora do metropolitano ou do autocarro. Os restantes ocupantes olham para o vazio, congeminando listas e planos ou tentam ler o objecto de leitura do vizinho, pois infe lizmente se esqueceram do próprio.

Eu, por mim, gosto da diversidade de sons dos transportes desta grande cidade: o buzinar estrepitoso e por vezes colérico do condutor; o toque de recolher das portas do metro; o vozear das gentes, em milhentas línguas, muitas delas ininteligíveis; a cadência sonora da composição sobre os carris; os silvares da mesma sobre o metal e o som de objecto estranho (que é o metro ao desbravar estes escuros túneis) ocupando velozmente o que ainda há pouco era espaço vago, expulsando o ar pelas laterais, como uma bala empurrada fatalmente pelo cano da arma.

Gosto deste alheamento que sempre saboreio ao saber como pouco significamos numa grande metrópole. Que somos mais uma peça da engrenagem da máquina urbana, que não soçobraria se faltássemos um momento que fosse, pois é uma máquina tão complexa, feita de inúmeras peças humanas com o mesmo valor que eu – ou seja, completamente e idealmente desnecessárias. Faço parte desta cosmopolita mole humana, sou igual a tantos outros como se fôramos uma fileira de indecifráveis faces de cidadãos da Eurásia (desse Orwell que por aqui também andou e que por aí deixou pedaços da sua carne), tão insignificante para fazer diferença no imediato. O que faço seria imediatamente feito por outro chamado a preencher a minha vaga.

Sou parte da paisagem urbana e contento-me por passar despercebido no meio dos demais – e dos demais me passarem ao lado. Gosto de comparar a vida aqui como se se tratasse de um colossal formigueiro, com todos a trabalharem para o bem comum (ou para a desgraça alheia) como formigas, sempre correndo agitadas, para lá e para cá, cegas perante outras, só tactilmente e fugazmente próximas. O melhor de viver numa cidade imensa como esta é mesmo a ausência de estarmos, para os outros habitantes é indiferente estarmos ou não estarmos, existirmos ou sermos, se estivermos somos mais uma cara na galeria de rostos irreconhecíveis; se não, não. Mas existem ligações, amizades, contactos, conhecimentos, claro! Mas não na fria e concorrida atmosfera de um transporte público. Só no exterior, na cidade autêntica. Mas aqui, nunca se entabula conversa prolongada com ninguém.

Barcelona, num qualquer dia de feira de Fevereiro de 2004