20080529

´~+++~~~~

BAIRRO ZINE 0.3
a carta desd'o bairro
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
(1) ROSEBUD(DY) - ensaio algo-assim-são
(2) JUGULAR - andamento suave
(3) FEIRA DA LADRA - livro de viagens de dentro de mim
(4) O JOGO E AS GENTES - formato pensado
(1) ROSEBUD(DY) - ensaio algo-assim-são

Rosebud foi a última palavra a soltar-se da boca de Charles Foster Kane no filme de Welles e que serviu de mote a toda uma busca sobre a essência de uma vida e a um revolver do passado cheio desse homem muribundo que soçobrava libertando o mundo que abraçou. Não era mais que uma palavra obscura balbuciada pela personagem central do filme que reflectia um outro cidadão americano bem real - WRHearst - e que levou a uma falhada e intensa busca pelo nada! Não somos mais que meros acumuladores de experiências em contínuo crescendo - cumulando, acumulando, acrescendo, crescendo - depositamos em nós tanto ao longo de tantos anos que se torna quase irónico que se resuma em última frase de vida todo um existir! Somos um depósito, uma caixa, um invólucro, uns capturadores de imagens, uns recolectores de memórias!

Apetecia-me fazer aqui um pequeno apanhado das grandes frases do ocaso mas fico-me pela do tesouro luso, Camões, a quem colocaram na hora da morte o seguinte dito que acompanhava a crise de sucessão do momento: 'Morro com a pátria'.

Não podemos resumir tudo o que temos de vida numa frase só de momento só e a frase de Camões - mítica e teatral - foi encaixada ali pelos potenciadores de mitos. Talvez que com o meu último sopro se me despegue algo como falta-me aquilo na despensa ou um ai pelo jogo esquecido de apostar. Poder-se-á prever algo que faremos com tanta antecendência e nitidez? Poderias prever estar a ler isto que lês agora, sorrindo então pela óbvia referência a ti próprio? E que frase empregarias no último momento- caso fosse possível a escolha - ficaria de epitáfio solene em estertor final?

Repousa de mim. Jaz por terra.

(2) JUGULAR - andamento suave

Prendeu-se na minha memória uma peça de videoart de João Tabarra que vi no início do ano passado e que mostrava um sapateador com uma caraça colocada - oculto portanto - percorrendo um trajecto pré-estabelecido pelas ruas de Lisboa, do Marquês até ao Rossio. Todas as pessoas a quem o artista se apresentava, assim insólito sapateando pela rua e mascarado, ficavam surpreendidas. Esse era a verdadeira intenção da peça e a natural confusão induzida nos transeuntes a arte em si! Paravam todos e questionavam-se, sorriam uns, agitavam a cabeça outros, uns ficavam perplexos procurando apoio sobre o ridículo a que se achavam assistir, outros fingiam-se desinteressados para estancarem mais à frente, volteando-se - isto faz apetecer provocar as pessoas continuamente, perpetuando um estado de contínua dúvida e apelando à crítica. Não é verdadeiramente isto a que se poderá chamar a arte, não seria esta uma definição próxima?

A jugular é uma das nossas veias fundamentais, um dos vasos sanguíneos essenciais que na volta do sangue para o cérebro se esvaziou de oxigénio por ali e vem alimentar novamente o coração em eterno retorno. Em Eterno Retorno. O homem que segue sapateando em circuito fechado (em percurso do início para o fim - ponho mentalmente o filme em loop - mas sempre temos que caminhar, até desaparecermos) e o cíclico fluxo sanguíneo são exemplos da continuidade e alternância em tudo o que existe, faces da moeda de vida em que seguimos, em rotação perpétua.

Como se chama o montículo de carne do lado esquerdo da palma da tua mão, abcesso do polegar, logo acima do pulso? Imagino-te rodando a mão identificando o tal pedaço de carne de que falo - gesto ridículo já que a resposta não está cravada na pele, mas sim no fundo do zine.

(3) FEIRA DA LADRA - livro de viagens de dentro de mim

De todas as hipóteses para o étimo do mercado franco de Lisboa - para a Feira da Ladra - agarro-me mais aquela que me parece mais certeira: de Lázaro, ladro, lazarento, miserável - pois é da miserabilidade e da necessidade humana em recorrer a todos os possíveis expedientes de que estas feiras sobrevivem. Perco-me muita vezes por aí, tentando descortinar histórias e imaginando-me a vender algo também - só me faltam objectos, preciso de coisas de que possa dispor.

O sorriso do sinaleiro do Príncipe Real recebe-me agora todas as manhãs em que sigo para o trabalho de carro - somos conhecidos de passagem dos dias e sigo pensando que mesmo que o cumprimente e receba um assentimento cúmplice na volta, não lhe conheço a voz de todo - gargalho imaginando-a feminina, aguda.

Barcelona recebeu-me mais uma vez este mês e refrescou-me de amigos novamente o estar de tarde na Ciutadella e o deambular tonto por aquelas ruas mágicas, Miró, Tàpies, Barceló, Fura, Calder, Dali, Coderch, Miralles, Picasso.. ). Voltei ainda a Coimbra aonde não ia já desde Fevereiro, revi tanto que não parava de sorrir em gosto de forma - @corvo foi belíssimo, obrigado, gostei do detalhe do pedaço meu escrito ainda na parede. E em encontro de amigos ouvindo James em Queima de reencontro - eu e os meus irmãos repetindo dez anos depois o mesmo concerto que foi o nosso primeiro festival no Porto! É possível permanecer intocado com tanto toque de bom em simultâneo?

Faço também um requiem por uma amizade mais do que isso e festejo os miradouros de Lisboa - sol, gentes e livros e celebro três coisas de bom, dois projectos novos que estão em ebulição e que desvendarei prontamente mais à frente : cs e spotted by locals lisbon e a publicação de um trabalho meu num catálogo de exposição : vitrakem by pavicer.

(4) O JOGO E AS GENTES - formato pensado

Já não me recordo totalmente como me surgiu este, vão-se tornando cada vez mais difusas com o avanço dos dias e das horas determinadas revelações.

Voltou-me a ideia quando seguia na composição maior da linha azul do metro de LX por uma destas manhãs habituais de ida para o trabalho - olhava o fundo das três carruagens amarradas entre si sibilando pelo corredor subterrâneo, reparando como esse me desaparecia da vista nas curvas mais apertadas do percurso.O jogo e as gentes e a visão das coisas - recusamos o que não vemos ou não compreendemos para seguir mais confortáveis, agilizamo-nos para resumir imediatamente o que nos interessa e tentamos acarinhar quem nos é importante. Quem é jogador ocasional e se esquece de apostar (falo de um apostador esporádico, que os regulares jamais se esquecem) insiste em ver o resultado, sofrendo se a sua aposta não lançada é a vencedora ou faz por esquecer e nem se preocupa?

Não é esta uma maneira rápida de nos resumirmos e a vida assim também - somatório de perdas e conquistas, apostas feitas continuamente, outras esquecidas e algumas ganhas - em Eterno Retorno, em constante intermitência?

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Paleta de som - Sneaker Pimps > Six Underground (som eleito de casa) + The National > Fake Empire (de MP3 vogando pela cidade)

Imagem - Luz nas ruas, Príncipe Real, Lisboa

Notas - (1) o filme, Citizen Kane; (2) teoria do eterno retorno, Nietzsche; montículo da mão, Monte de Vénus; (3) flea market, swap meet, marché aux puces, feira da ladra, bazaar, mercadillo; as que conheço são as de encants vells em Barcelona, el rastro em Madrid, portobello road em Londres e a da ladra em Lisboa (no entretanto passei pela vandoma, Porto; feira sem regras, Coimbra; place du jeu de balle, Bruxelas; o flohmarkt/naschmarkt em Viena; zandfeesten em Brugge e outros em Gent, Hamme e Berlim); (4) linha azul, da gaivota