20200502

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BAIRRO ZINE 0.5
carta desd'o bairro
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(1) ESTEOUTRO BAIRRO - triangulação espontânea
(2) AMOR EM TEMPOS DE PANDEMIA - teórico amorizações
(3) APONTAR UM DIÁRIO - formato pensado
(4) TECTOS - andamento suave







(1) ESTEOUTRO BAIRRO - triangulação espontânea

Escrevo umas linhas mais, porque é de conforto e de prazer que me faz a escrita. Parece certeira, cresce automática, flui naturalmente, assenta por aqui. Mesmo que sem qualquer motivo ou objectivo, escrever faz-me alma, arrebita, faz-me fogaça no ventre e na cara, conforta-me. Faz-me flow (1). Faço aqui uma breve pausa e compro o livro, finalmente. Já está. Chegará numa semana, mais ou menos vírus a entaramelar os percursos e a distribuição postal. Escrever é uma necessidade fisiológica, tão necessária que a sua ausência provoca desconforto, a sarar com pelo menos uma ou duas linhas - nada de haiku - a compor uns pensamentos. Escrevo agora e retomo-o, este bairro zine que foi sempre irregular, num novo bairro, numa nova cidade, numa tal de «nova normalidade». Alta (antes, o original do primeiro Bairro Zine, se bem me recordo, era Bairro Alto, daí também o nome escolhido); Coimbra (era Lisboa - LX) e a «nova normalidade», daquelas expressões certeiras e acertadas de que se não conhece a autoria e que bem definem um determinado modus vivendi, paradigmas, que é a situação pandémica que cobriu o mundo de um manto diáfano de incerteza e que ainda nos devassa.

(2) AMOR EM TEMPOS DE PANDEMIA - teórico amorizações

Em tempo de pandemia, em que os pensamentos vivem acossados entre quatro paredes e em que se limitaram os horizontes do eu, as relações e os sentimentos sobrevivem num confinamento difícil. Mesmo para aqueles que não podem prescindir de trabalhar longe de casa, em que os confinamentos são menos geográficos, mas também mentais. Entre quatro paredes segue o amor cão ou o amor longe. Quantos viram cortada a sua relação pela imposição de afastamentos ou então quantos se viram na impossibilidade da corte, quando a hipótese era ainda uma semente. Aos arredados do relacionamento, acrescem os exaustos do relacionamento, aqueles para quem a convivência era difícil e agora a ela se viram obrigados. Ou ainda aqueles que vieram a descobrir algo que nem imaginavam, que a sua relação estava por um fio e as suas quatro assoalhadas só o precipitaram. Há muitas e múltiplas vivências que se viram forçadas, quase do dia para a noite, a reinventar-se e reconsiderar-se. A interacção humana é um bem precioso e também um gesto singular. Certamente que para cada duas pessoas que se aproximou, haverá certamente duas que se afastaram e ainda outras duas que se viram irremediavelmente acossadas, por falta de via de fuga, perante qualquer violência que já vinha de antes. Pandemia não é uma panaceia. Isto dará certamente um texto de teatro ou um livro, algo. (2)

(3) APONTAR UM DIÁRIO - formato pensado

A minha relação com a escrita em diários sempre foi intermitente. Tive-os a tempos soltos, ora por uns dias, ora por algumas semanas. Fosse por um par ou por algumas dezenas de dias, os meus diários eram sempre experiências fugazes. Nunca me agarrava por muito tempo. Sentia-me demasiado condicionado a escrever, exercício que sempre me fluiu melhor quando solto de quaisquer amarras. Sei que essas intermitências a escrever foram mais frequentes quando tinha tempo disponível para testar outras vias de escrita. Não necessariamente daquelas vias que eu consideraria produtivas. Ou seja, para publicações, possíveis livros, textos com algum veículo - económico, temático, utilitário - em vista. Um diário é uma deambulação sem amarras, livre, sem quaisquer regras literárias ou de alcance final, de umbiguismo e desgarrada, soltando a verve descerebradas. Quem o lerá que não o próprio? Existe algum escritor que tenha começado a compor o seu diário sem ser reconhecido como escritor para, depois de já o ser, esse diário passar só então a fazer sentido para investigadores e apreciadores da sua obra? Terá algum escritor resistido a destruir um diário seu antes do reconhecimento da sua obra, como pedira Kafka? Adolfo Correia da Rocha, o Miguel Torga, começou a lançar volumes do seu diário quando já era conhecido, o Diário I em 1941, o II em 1943, o III em 1946; um volume a sensivelmente cada 3 anos, até ao VIII, em 1959. Já em 1999, foram publicados os volumes IX a XVI, que cobrem os anos 1964 a 1993. Este exercício era o seu lado B. Mas que interesse para o comum leitor, se não apenas para o interesse académico. Certamente não para deleite literário. E qual o interesse para o escritor? Um ginasticar pelos meandros da escrita criativa, como bálsamo necessário para a expulsão das palavras que se vão acumulando e como método de disciplina e afinação de escrita. Peguei num desse volumes de Torga e li ao acaso - porque se há objecto literário a que não há a necessidade de fio condutor, é no diário - e vi expressos pensamentos de médico, a tergiversar sobre este ou aquele paciente, esta ou aquela preocupação mundana, afazeres do quotidiano pouco substanciais. Comuns. Enfadonhos? Porquê escrever então um diário? Porquê então a escrita de diários (que não diarismo)?

(4) TECTOS - andamento suave

O tecto simboliza e simbolizará sempre um limite palpável. Não se diz o tecto é o limite, diz-se o céu é o limite. Mas é o tecto que é visível e alcançável, o céu é invisível e inalcançável. A qual é que devemos almejar? Haverá algum equilíbrio entre um e o outro? Podemos talvez considerar os dois como possibilidade, o tecto como um degrau para o infinito, o infinito como o objectivo último, a alcançar após o ultrapassar o primeiro. A coisa complica quando se habita no piso térreo de um edifício em que o número de tectos se multiplica consoante o número de andares, fazendo aumentar o número de objectivos a alcançar e a ultrapassar e tornando o céu ainda mais distante para o observador. E da óptica deste observador, isto torna-se uma metáfora da ascensão social. Foi a esta metáfora - sucessão de camadas a transpor para sobrevir a uma condição de classe - que Jacques Lob e Jean-Marc Rochette recorreram ao criar Le Transperceneige (3), recriado depois por Bong Joon-ho no seu Snowpiercer (4). Luta de classe pura e dura - e sangrenta, comme il faut na revolução. Onde é que isto já vai, camaradas. Unimo-nos. O tecto é também - para quem o possui, claro - o visível firmamento ao adormecer e ao despertar, corporizando tanto uma barreira ao firmamento autêntico, a abóbada celeste, como também funciona como uma camada de protecção ao que seria uma exposição à inclemência do tempo e à intermitência das intempéries. O tecto é tanto o abrigo como a representação do abrigo - casa, protecção, conforto. Tecto, tectum. Não tétum.  E aqui importa explicar a feliz coincidência da proximidade entre arquitecto e tecto no português (5). Apesar dessa aparente vizinhança etimológica, ela não existe. Arquitecto vem do latim architectus a partir do grego arkhitéktōn (ἀρχιτέκτων), ἀρχι- (arkhi-, «chefe») +‎ τέκτων (téktōn, «construtor»). Tecto vem do latim tectum (cobertura), de tego (cubro), cognato com o grego antigo τέγος (tégos, «cobertura; qualquer divisão coberta de uma casa»).

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Paleta de som - Young Fathers : In My View + Angelo Badalamenti : Fire Walk With Me 
Imagem - Kinetic Drawings, Bairro Alto, Lisboa, Setembro de 2011

Composto enquanto saltitava na composição de outros dois textos durante tempos de pandemia, confinado em casa na Alta de Coimbra, Abril de 2020

Notas: 1) A partir da noção de flow, the psychology of optimal experience, postulada por Mihaly Csikszentmihalyi; 2) Imagino algo na linha de Sarah Kane, ver Pinter, também; 3) Editado pela Casterman, em 1982; 4) E também palpável no El Hoyo / A Plataforma, de Galder Gaztelu-Urrutia; 5) Caem os C mudos com o AO90, fica arquiteto e teto, eu escrevo com a grafia anterior.
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Ler as anteriores : BAIRRO ZINE 0.1BAIRRO ZINE 0.2 | BAIRRO ZINE 0.3 | BAIRRO ZINE 0.4 

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