20050920

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CINCO HORAS DA MANHÃ REDUX 

Como certas coisas nos dão prazer

(texto "5h da manhã" adaptado e acrescentado)

Estou num daqueles momentos de introspecção, a meditar em tudo e tudo me passa pela mente. Entre os demais pensamentos lembrei-me que precisava de lavar o interior do meu carro, pois tinha reparado ontem que estava cheio de pó, de restos de terra, de desperdícios de tabaco e demais detritos deixados por sei lá quem que o co-habitou comigo por escassos minutos.

Como a meditação solitária parte de uma vontade de clarificar ideias e permite atingir um estado de temporária e invulgar lucidez (pelo menos para mim funciona assim, para outros de outra maneira funcionará), pensei, nesse estado de harmoniosa clareza: Deixa-te disso, és preguiçoso q.b. para o lavares, não gostas de gastar o guito para outros o lavarem pois achas isso quase ridículo e, além disso, até é bonita a ideia de manter aqueles pedaços de vivências que estão ali a recordar coisas passadas. Como coisas tão triviais nos ocupam a mente nos momentos que pedem objectos de análise mais profundos! E como consigo encontrar poesia nas coisas mais abstrusas!

Mas explico o meu entendimento, para não ficarem a negro sobre o que me vai na cabeça: os sedimentos nos tapetes, a poeira castanha na consola (vulgo tablier) e a cinza de cigarro (e queimadelas pontilhadas pelos estofos também) puxam-me a memória de acontecimentos já quase esquecidos. Viagens, noitadas e fugas assomem-me agora à mente, numa visão feliz que recordo com um traço mais redondo sobre a face: um sorriso bem aberto!

Os tapetes têm terra deixada por tantos e tantos amigos e tantas pegadas de tantas viagens de tantos lugares aqui se acumulam! E o pó castanho avermelhado que persiste sobre os plásticos da consola? Trazem Zambujeira, Algarve e Paredes de Coura à memória do momento... Noites e dias de Aveiro, Leiria, Coimbra e Porto aparecem também, amigos e amigas! Até um beijo de boca feito pó aqui já existiu, pelo exterior do vidro! Mas este o vento e a chuva trataram de apagar, foram esvoaçando os últimos grânulos até não ficar nada de nada (e esse beijo interessava que sumisse, por mágoa). Réstias de momentos bons que vivem no carro e assim também na minha memória...

O meu carro é um collector of memories, um catálogo de vivências, um álbum de imagens soltas. Podia deixá-lo assim para ir sorrindo de tempos a tempos ao olhar em volta – mas outras poeiras cobrem estas antigas e ok, estou a tentar embelezar uma coisa que talvez não seja assim tão bela, serve como desculpa para eu não lavar a porcaria do carro... A memória serve-me perfeitamente e melhor ainda que um carro sujo e vacilante.

Amanhã encaminhar-me-ei para a lavagem e aspirarei com afinco todo o pó que resiste.

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