20080529

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BAIRRO ZINE 0.3
a carta desd'o bairro
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(1) ROSEBUD(DY) - ensaio algo-assim-são
(2) JUGULAR - andamento suave
(3) FEIRA DA LADRA - livro de viagens de dentro de mim
(4) O JOGO E AS GENTES - formato pensado
(1) ROSEBUD(DY) - ensaio algo-assim-são

Rosebud foi a última palavra a soltar-se da boca de Charles Foster Kane no filme de Welles e que serviu de mote a toda uma busca sobre a essência de uma vida e a um revolver do passado cheio desse homem muribundo que soçobrava libertando o mundo que abraçou. Não era mais que uma palavra obscura balbuciada pela personagem central do filme que reflectia um outro cidadão americano bem real - WRHearst - e que levou a uma falhada e intensa busca pelo nada! Não somos mais que meros acumuladores de experiências em contínuo crescendo - cumulando, acumulando, acrescendo, crescendo - depositamos em nós tanto ao longo de tantos anos que se torna quase irónico que se resuma em última frase de vida todo um existir! Somos um depósito, uma caixa, um invólucro, uns capturadores de imagens, uns recolectores de memórias!

Apetecia-me fazer aqui um pequeno apanhado das grandes frases do ocaso mas fico-me pela do tesouro luso, Camões, a quem colocaram na hora da morte o seguinte dito que acompanhava a crise de sucessão do momento: 'Morro com a pátria'.

Não podemos resumir tudo o que temos de vida numa frase só de momento só e a frase de Camões - mítica e teatral - foi encaixada ali pelos potenciadores de mitos. Talvez que com o meu último sopro se me despegue algo como falta-me aquilo na despensa ou um ai pelo jogo esquecido de apostar. Poder-se-á prever algo que faremos com tanta antecendência e nitidez? Poderias prever estar a ler isto que lês agora, sorrindo então pela óbvia referência a ti próprio? E que frase empregarias no último momento- caso fosse possível a escolha - ficaria de epitáfio solene em estertor final?

Repousa de mim. Jaz por terra.

(2) JUGULAR - andamento suave

Prendeu-se na minha memória uma peça de videoart de João Tabarra que vi no início do ano passado e que mostrava um sapateador com uma caraça colocada - oculto portanto - percorrendo um trajecto pré-estabelecido pelas ruas de Lisboa, do Marquês até ao Rossio. Todas as pessoas a quem o artista se apresentava, assim insólito sapateando pela rua e mascarado, ficavam surpreendidas. Esse era a verdadeira intenção da peça e a natural confusão induzida nos transeuntes a arte em si! Paravam todos e questionavam-se, sorriam uns, agitavam a cabeça outros, uns ficavam perplexos procurando apoio sobre o ridículo a que se achavam assistir, outros fingiam-se desinteressados para estancarem mais à frente, volteando-se - isto faz apetecer provocar as pessoas continuamente, perpetuando um estado de contínua dúvida e apelando à crítica. Não é verdadeiramente isto a que se poderá chamar a arte, não seria esta uma definição próxima?

A jugular é uma das nossas veias fundamentais, um dos vasos sanguíneos essenciais que na volta do sangue para o cérebro se esvaziou de oxigénio por ali e vem alimentar novamente o coração em eterno retorno. Em Eterno Retorno. O homem que segue sapateando em circuito fechado (em percurso do início para o fim - ponho mentalmente o filme em loop - mas sempre temos que caminhar, até desaparecermos) e o cíclico fluxo sanguíneo são exemplos da continuidade e alternância em tudo o que existe, faces da moeda de vida em que seguimos, em rotação perpétua.

Como se chama o montículo de carne do lado esquerdo da palma da tua mão, abcesso do polegar, logo acima do pulso? Imagino-te rodando a mão identificando o tal pedaço de carne de que falo - gesto ridículo já que a resposta não está cravada na pele, mas sim no fundo do zine.

(3) FEIRA DA LADRA - livro de viagens de dentro de mim

De todas as hipóteses para o étimo do mercado franco de Lisboa - para a Feira da Ladra - agarro-me mais aquela que me parece mais certeira: de Lázaro, ladro, lazarento, miserável - pois é da miserabilidade e da necessidade humana em recorrer a todos os possíveis expedientes de que estas feiras sobrevivem. Perco-me muita vezes por aí, tentando descortinar histórias e imaginando-me a vender algo também - só me faltam objectos, preciso de coisas de que possa dispor.

O sorriso do sinaleiro do Príncipe Real recebe-me agora todas as manhãs em que sigo para o trabalho de carro - somos conhecidos de passagem dos dias e sigo pensando que mesmo que o cumprimente e receba um assentimento cúmplice na volta, não lhe conheço a voz de todo - gargalho imaginando-a feminina, aguda.

Barcelona recebeu-me mais uma vez este mês e refrescou-me de amigos novamente o estar de tarde na Ciutadella e o deambular tonto por aquelas ruas mágicas, Miró, Tàpies, Barceló, Fura, Calder, Dali, Coderch, Miralles, Picasso.. ). Voltei ainda a Coimbra aonde não ia já desde Fevereiro, revi tanto que não parava de sorrir em gosto de forma - @corvo foi belíssimo, obrigado, gostei do detalhe do pedaço meu escrito ainda na parede. E em encontro de amigos ouvindo James em Queima de reencontro - eu e os meus irmãos repetindo dez anos depois o mesmo concerto que foi o nosso primeiro festival no Porto! É possível permanecer intocado com tanto toque de bom em simultâneo?

Faço também um requiem por uma amizade mais do que isso e festejo os miradouros de Lisboa - sol, gentes e livros e celebro três coisas de bom, dois projectos novos que estão em ebulição e que desvendarei prontamente mais à frente : cs e spotted by locals lisbon e a publicação de um trabalho meu num catálogo de exposição : vitrakem by pavicer.

(4) O JOGO E AS GENTES - formato pensado

Já não me recordo totalmente como me surgiu este, vão-se tornando cada vez mais difusas com o avanço dos dias e das horas determinadas revelações.

Voltou-me a ideia quando seguia na composição maior da linha azul do metro de LX por uma destas manhãs habituais de ida para o trabalho - olhava o fundo das três carruagens amarradas entre si sibilando pelo corredor subterrâneo, reparando como esse me desaparecia da vista nas curvas mais apertadas do percurso.O jogo e as gentes e a visão das coisas - recusamos o que não vemos ou não compreendemos para seguir mais confortáveis, agilizamo-nos para resumir imediatamente o que nos interessa e tentamos acarinhar quem nos é importante. Quem é jogador ocasional e se esquece de apostar (falo de um apostador esporádico, que os regulares jamais se esquecem) insiste em ver o resultado, sofrendo se a sua aposta não lançada é a vencedora ou faz por esquecer e nem se preocupa?

Não é esta uma maneira rápida de nos resumirmos e a vida assim também - somatório de perdas e conquistas, apostas feitas continuamente, outras esquecidas e algumas ganhas - em Eterno Retorno, em constante intermitência?

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Paleta de som - Sneaker Pimps > Six Underground (som eleito de casa) + The National > Fake Empire (de MP3 vogando pela cidade)

Imagem - Luz nas ruas, Príncipe Real, Lisboa

Notas - (1) o filme, Citizen Kane; (2) teoria do eterno retorno, Nietzsche; montículo da mão, Monte de Vénus; (3) flea market, swap meet, marché aux puces, feira da ladra, bazaar, mercadillo; as que conheço são as de encants vells em Barcelona, el rastro em Madrid, portobello road em Londres e a da ladra em Lisboa (no entretanto passei pela vandoma, Porto; feira sem regras, Coimbra; place du jeu de balle, Bruxelas; o flohmarkt/naschmarkt em Viena; zandfeesten em Brugge e outros em Gent, Hamme e Berlim); (4) linha azul, da gaivota

20080413

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BAIRRO ZINE 0.2
a carta desd'o bairro

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(1) POMBOS DE MIM - ensaio de mim
(2) O CIRCO DO BAIRRO ALTO - pequeno ensaio sobre uma busca
(3) NOVAS IMEDIATAS - assuntos dispersos
(1) POMBOS DE MIM - ensaio de mim

Dizia-me alguém há pouco tempo após ler algo de mim - sem tirar quaisquer outras conclusões, sem nada mais apontar, o que me irritou quase até ao infinito: 'Eu estou numa onda de ficção, não tanto autobiográfica...', enquanto me passava o manuscrito para a mão descolando-me o sorriso.

Autobiografia... resume-se o que escrevo a pedaços de mim fitacolados em papel em sucessão de umbiguismo, escrito escritos pontapeados sobre a folha expondo este Rafa e as suas coisas de Rafa? Não quero ser nem Miller nem Gutierrez, nem Lobo Antunes, nem Bukowski - partilho com os outros aquilo que vejo e sinto e sou e fico assim etiquetado, engavetado num rótulo de Autobiógrafo.

Sobrevem-me o superego sobre o ego por andar em constante sobressalto para acalmar esta angústia de nada conhecer por mais que conheça, doo-me a ti porque me espelho em todos os que seguem angustiados na senda da cura desse estado de ser - tu. 'Não me parece angústia, é sede de saber!' - dizia outro alguém; mas é angústia é, porque é quase tangível este desejo de tudo abarcar e tudo aperceber e que segue ainda e cada vez mais presente como inalcançável. 'Ignorance is bliss', é possível que seja verdade, mas é tão sensaborão!

Ainda no outro dia era eu um grande ponto de interrogação e dizia-me ela sobre tudo isto: 'Falta-te um rumo, mostra algo às pessoas que lhes diga algo, que lhes capte a atenção'. Um rumo é algo que requer demasiado planeamento e eu vejo-me ziguezagueando por aí, sempre; este rumo soaria a falso porque não espelharia este escriba porvir, esta tentativa ainda insossa de alguém que se quer fazer por letras.

Dois pombos habitam a caixa de estores do andar desabitado logo abaixo do meu, inalcançáveis. Empoleiram-se sobre os estores durante as tardes solarentas e acomodam-se enroscando-se quando cai a noite, cagando-me a entrada do prédio com a precisão de um F117 de mira calibrada sobre quem entra e sai. Tenho já o tique de antes de meter a chave à porta e de me esgueirar - porta dentro, porta fora - de virar o olhar para cima, procurando esquivar-me de algo ou de tudo que se solte lá de cima, desde um quase longínquo terceiro andar.

Todos os dias lá estão e não lhes posso tocar nem de sopro. Que melhor metáfora para a vida do que o estar sempre receoso com o toque da imundície e seguir sempre saltando para nos cumprirmos?

(2) O CIRCO NO BAIRRO ALTO - pequeno ensaio sobre uma busca

Seduz-me saber mais do que sei sobre o sítio onde habito - continuamente e em crescendo - porque não há melhor ambição geográfica do que conhecer realmente o chão que pisamos no quotidiano, ainda que por alguns dias ou meses. A nossa casa - a tal reconfortante ideia de lar - realiza-se plenamente ao juntarmos à percepção real deste espaço entre estas 4 paredes que me confinam agora e aos seus apêndices compartimentos, a noção da casa vizinha, do prédio em frente, da rua, da calçada e suas pedras, do quarteirão e do bairro, da colina e da cidade toda, das lojas e das pessoas e suas preocupações.

Tratar pelo nome o dono do café próximo e partilhar com ele o resultado do futebol, lidar tu cá tu lá com a senhora da mercearia de última hora e ter guardado de antemão o melhor e mais fresco produto da casa, não abrir a boca estremunhado pela manhã ao entrar na pastelaria da esquina e ser presenteado com o costumeiro pequeno-almoço.

No BA, neste Bairro Alto onde respiro, tenho para já três ambições de pesquisa, a saber: desvendar a história e origem da Escola de Circo do Bairro Alto; investigar a sua génese teatral, relacionando-a com a Rua Luísa Todi, onde viveu Silva Porto e saber mais sobre quando o BA era o núcleo jornalístico da cidade, onde existe ainda A Bola, último sobrevivente noticioso e onde já laboraram O Século, A Capital e o DN, entre imensos outros.

(3) NOVAS IMEDIATAS - assuntos dispersos

Caros, entrego novas sobre este que se vai despedindo, entregando-se a um sono lento entorpecedor; qualquer escrito tem que terminar assim, revendo-me e anunciando-me. De concursos, perdi o Távora mas fiquei em 2º no de cenografia para As Boas Raparigas, do Porto (alguém o disse, nunca o consegui confirmar); perdi o Maria Matos, mas fiquei em 4º no Pavicer, com direito a exposição e publicação (a empresa acabou por falir no decurso de 2015-16?). 

Do mais o mais importante é mesmo o M+A+L : www.movimentoacordalisboa.com (entretanto descontinuado), que corre destemido e resoluto em chocalhar LX.
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Paleta de som - PJ Harvey > We Float

Imagem - Ensaios com fibra óptica, Carpe Diem, Lisboa

20080402

+´~+~+~+

O ENSAIO NO MAL
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Contra o tédio domingueiro, e com o bom tempo nas costas o MovimentoAcordaLisboa.com convida-te.

O *Rafael Vieira* prepara as algas marítimas, o arroz, o salmão em tiras finas e os camarões. Vai criando os* *rolinhos que servem de pretexto para quem queira conhecer a nova morada do MAL lá para os lados do Saldanha, para quem queira sociabilizar *à bruta. *A agulha vai tocando o vinil, e de faixa em faixa, em momentos tranquilos e frescos deixamos-nos levar pela, mão e sensibilidade de *Miguel Carvalho*.

A Casa não é uma galeria, não é um bar, não é um restaurante, não é sala de exposição, nem é centro de *workshops*. É simplesmente uma Casa que alberga muito mais e cultura. Este é um duplo convite. Um convite à tua presença e também um convite à tua arte.

Na Casa do MAL encontrarás um projector, um ecrã, hi-fi, paredes, mesas e até o chão para apresentares à cidade o teu talento. Traz a tua vontade e no *Domingo, 6 de Abril a partir das 19h e até às 23h* abrimos as portas à Casa em Branco. Sushi, saké, chás gelados, vinho e cerveja caseira por 10 €.

Na senda do Porta Aberta, surge esta proposta numa Casa maior para os inícios de noite de domingo. No espírito de noites de curiosidade e olhares indiscretos, estás convidad@.

Inscrições abertas até Quinta-feira inclusive em baixo. Caso queiras propor conteúdos para futuros *happenings* email para geral@movimentoacordalisboa.com. As nossas paredes podem muito bem ser tuas...
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Texto - Texto composto para um «Porta Aberta» de sushi, evento do MAL - Movimento Acorda Lisboa, Saldanha, Abril de 2008. Recuperado do site que foi entretanto descontinuado

Imagem - Nikon FE10, Cais do Ginjal, Almada, Agosto de 2008

20080131

~++´+´+´~´ºç.,m

BAIRRO ZINE 0.1 
a carta desd'o bairro
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(1) APRESENTAÇÃO DE MIM MANIFESTO - retro-retrato
(2) O SINALEIRO DO PRÍNCIPE REAL - curta de esquina

(1) APRESENTAÇÃO DE MIM MANIFESTO - retro-retrato

Procurei no quotidiano a forma mais usual de apresentação entre as pessoas e encontro sempre os mesmos passos, o mesmo mecanismo: chamo-me, vivo em, nasci a e em, sou de, vim de...

Na maior parte das vezes surge apenas o nome a preceder o aperto de mão ou o beijo. Nos mais formais dos casos avança apenas a mão, em predicado; para nos cumprimentos de amigo ser toda a pessoa rodeada em amplexo e coberta de beijos, ósculos de contentamento.

Procurei na poesia forma concreta ou indefinida de alguém se concretizar e na prosa o mesmo, atributos com que o escriba se clarificasse. Bocage, Pessoa, nariz, tez e altura.

Procuro em mim e nas minhas palavras, forma mais natural e não tão formatada como o do ritual dos dias, para me descrever e encontro este, quase como um manifesto, quase como um Rosebud *1, um manifesto ponto-de-situação de mim, um alinhavado de intenções também:

«Não tenho afinidades políticas que não sejam as humanistas e observo com atenção todas as próximas a esse meu ideário. Quero os amigos bem perto e não me desejo com inimigos. Sou talvez demasiado bom quando por vezes até devia ser bastante mau, mas essa nunca é uma virtude por de menos. De estatura média, carrego nariz de verdadeira grandeza, que remata a testa límpida e a nuca de cabelo inexistente. Barba rala persistente, 3 amuletos cravados na cara, brilhando quais estrelas perdidas desta minha constelação.

Sorriso aberto e cravado de cigarro. Corpo médio magro, nem fino nem cheio; dedos de pianista sem o saber. Olhos brilhantes castanhos de cambiante irregular, tanto verde azeitona como mel, como... diz-me. Identifico-me contigo e, por isso, recebes isto, toma.»

*1 
Rosebud, última frase dita por Citizen Kane, no homónimo filme de Orson Welles, que fabricou para a primeira página da primeira edição para o primeiro jornal de muitos, um manifesto de intenções escrito à mão.

(2) O SINALEIRO DO PRÍNCIPE REAL - curta de esquina

Serve um pequeno conto como partilha do dia-a-dia, descontinuada sim, mas querida.

Seguro-me ao carro pela manhã ao sair de casa, vou ainda estremunhado e tenho que confiar nesse meu suposto piloto mecânico, não completamente automático, para me guiar. Escorrego a mão sobre a caixa de velocidades para regular o andamento do veículo e volto logo com ela ao volante, acomodando-a nas 10/10, assemelhando-me aos condutores dos filmes americanos de há uns anos atrás: em nada credíveis, as mãos sempre a par sobre o volante e agitando este, de um lado para o outro.

No meu percurso de sempre encontro-me com uma das figuras do meu imaginário de LX, o sinaleiro do Príncipe Real, da Praça do Príncipe Real, quase a chegar ao Rato, depois da Escola Politécnica e do Botânico. Este polícia sempre me encontra pela manhã e eu a ele, locomovendo-me como posso consoante a sua indicação, e comigo, o meu acessório apêndice máquina.

Sujeito-me aos seus humores de polícia e paro ao seu sinal, mão em riste, travando-me. É esta uma saudação matinal? Avançam os outros, os da rua lateral e eu espero, deixando-me levar pela dança maquinal e frenética que o polícia-sinaleiro executa à minha frente. Apito na boca e braços em manobras, executa toda uma dança em desporto de agora. Improvisa uma caixa onde se debate, os seus olhos vogam para lá e para cá, felino, a controlar todos os movimentos de quem passa e se chega. Vocaliza apenas agudos, não verbaliza palavras, constroi ordens em andamento de sinfonia, mas prescindiu do resto da orquestra e só acolhe este único instrumento.

Eu acho-o belo em todo o seu funcionar, é um mimo de azul posto em farda e de um pequeno mundo de veículos e pessoas na mão, é um dançarino em palco de alcatrão posto a improvisar, horas seguidas.

Amanhã por esta hora eu o receberei novamente, com este olhar e este sorriso. Até, agora sigo por esta rua que se me abre à direita. Vejo-o ou imagino-o a acenar-me pelo espelho retrovisor. Talvez, faço este caminho todos os dias, não poderá guardar um gesto só para mim?

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Imagem - Bica de Duarte Belo, Lisboa. Tirada numa LC-A+, workshop de lomo pela Embaixada Lomográfica

20080126

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AMO-TE TONTO

uma mensagem é uma massagem
e
amo-te tonto, toda!

eu todo sorrio
sou eu sorriso,
sou eu o teu a tua boca, o teu respirar, o teu seio

preenche-me de vez, segura


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Desenho - em Lisboa, meados de 2008
022007

+++

ESCRITO EU

LX, 3 horas e trinta minutos
acabado de chegar do bairro
hoje sinto-me um escroto
um pedaço visceral de coisa humana
um nada
um naco de nada
nem um pedaço de gente
um vazio, um oco, um sem nada de ar
uma espécie de homem
um anão, um gnomo
nem um duende se aguentava aqui
sou um Nobre, uma Espanca, um al berto, um Andrade, um Gama, um Pessoa
sou de vísceras e de carnes
dilacerado por de dentro
sou um néscio decapitado

adoroador!
fezes pessoas!
eremitério Lisboa!
Cidade Sarjeta!

a partir de hoje existem dois caminhos divergentes
um sou eu que escrevo
o outro é o escrito
duas vidas que divergem de apenas uma
este eu que escrevo sou o pessoa
no fim o escrito é o autêntico e o escritor é o falso
estou de copo e alma
nesta irresoluta resolução
flutuante pássaro!

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Imagem - Cais do Sodré, Lisboa. Tirada numa LC-A+, workshop de lomo pela Embaixada Lomográfica

+´+´+ÚYT%$

A



































vejo-me sempre na obrigação interessada de responder às mensagens que me enviam
querendo que o diálogo fosse frente a frente, face a face
palavras escorrendo contornando subindo
tecendo ideias e amontoando carícias
respondo-te então,

mas para tão simplesmente te dizer : prefiro olhar-te nos olhos e dizer-te o que sinto
prefiro que me vejas e não que me imagines
que me sorrias ao sorrir-te
e não que hesites se me pintas sorrindo
até já conversa
beijinho em rodopio
e não, não pensas demasiado
eu sou assim, talvez mais ainda do que tu
somos demasiado mentais, talvez humanos em demasia (poder-se-á dizer isto?)
também eu busco solução para todas as questões mesmo tendo já certo que algumas respostas não existem à partida

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Desenho apontado em Carcavelos, algures em 2004/05

~+´+º--.,

O BEIJO NO VIDRO COMO QUE UM POEMA

o beijo significou muito,
mas foi dado no local errado - por sobre o vidro do carro em saída despedida
ficou a mensagem
e o resto em poeira
e em fome por o ter perdido

com uma medida de água se lava,
porque o vento se aliou à memória e não o tirava:
beijo no vidro, húmidas lembranças

a distância fez-nos bem,
ao apartar-nos tudo fica bem mais claro
transparente como esse vidro,
crystal clear

diz-se que o tempo cura e, sei-o agora, nenhuma outra máxima colaria aqui melhor!

ARRÊTÉ

és-me, P.
és-me anjo desasado
e também o diabo te revelas
em intimidade de luz cheia posta
e de ‘arrêté’ em sucessão
deixa-me recolocar-te as asas,
mais que amiga de dias de calçada e de cores de Lisboa
coloco-te as asas e vejo-te vogando voando
sorrindo plena com um sorriso aberto,sinto sentindo

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Desenho - em Lisboa, meados de 2008

+´´pp

P

Percorro o mar
A pé
Faço-me um novo milagre
Para chegar a essa africana margem
Idealizo

faço-te uma nova pele de beijos
E de carinhos

Faço-me amigamor total

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Desenho - em Lisboa, meados de 2008

´~+

CARTA A M.

és para mim mil obrigados
e mais que muitas satisfações,
tudo somado o bem em mim
todas estrelas do céu e ainda o seu reflexo
em água em leito
preenches-me quanto de pedrinhas roladas há de areia nas praias incontáveis deste mundo

~´+

INTERPELAÇÃO A A.

pode um amigo
ser amigo e amigo nada mais?
amigo de cafés e cigarros
de tardes em harmonia
desencontrado
desacertado
d’amores desengajado
serei uma fraude se amigo me quero e vejo?
reduz em amizade esse querer teu,
doseia esse desejo, que daqui terás já muito d’amigo

^`*+~´+º-.,

AN

fugaz namor
nem amor, nem namoro
tive
tive-te idealizada
sobre este leito
seio sobre este corpo
corpo sobre este ser
respiro aspirante
respiraria ofegante
cereja cereja
são estes fugazes namores
que os semeando os vou sorvendo

$%/()^`*

POEMA A SO.

então!
nunca mais disseste nada de mais!
fico-te pelo s
não te construo mais o nome
deixo-o cair, desmoronar
sorrisos houve
troca de palavras – não fluídos – também
mas foram tão tão breves!
sigo sorrindo e sem s´

doo uma saída a s

++~´+´+´+´+9895

PROMISSÃO

Diz pessoa para escritor que se desloca para o estrangeiro: "Vê se escreves".E mais lhe diz (completando as recomendações, as loas e as aspirações e, assim também mais fala e aqui o transcrevo para nos ajudar a triangular este pequeno enredo ainda enredado):

"Vê se escreves, caro amigo escritor, não te quero perder, não te quero estranhar, não te quero tomar como estranho! Escreve-me como amigo e não como escriba profissional, raspa um pouco ao de leve essa formatação do ofício, deixa de lado esses esperados formalismos e barroquismos de escrita e linguagem, que não são para nós, nem entre nós. Escreve-me sem modéstias, nem falsas nem imensas e sem profícua abusiva adjectivação, toma-me como leitor, não de circunstância, mas um que te chama de amigo chegado. Serei um ledor amigo”

Diz-lhe o amigo escritor e amigo:

“Tá bem, gatafunhar-te-ei uns tipos, umas lérias, arengarei até a caneta calejar o papel, serão umas épicas cartas, uns portentos de missivas, um não mais acabar de tretas, num prosaico chorrilho de verdade, numa cantilena de amores perfeitos, imperfeitos e mais que perfeitos e balelas e balelas a gosto ditadas, inté!”

Retorque o primeiro dialogante, o amigo do escritor amigo:

“Não espero nada de epopeico nessa letritas que o vento não levará, quero simplicidade do momento, irreflectidas palavras e frases por burilar, quero textos por facetar e, a haver tema, que o seja a quente, imediato e ainda por moldar.”
Remata o escritor amigo para o seu amigo não escritor:

“Algaraviada terás, postas de pescada postada e verborreias tardias. Dar-te-ei dialéctica e retórica simultânea e alternadamente, em abundante tempestade mental e ainda desinteressantes peças do quotidiano!”

Responde o leitor por vir:

“Quentes e boas palavras aqui as espero a dar novas do meu amigo!”Despedem-se num caloroso amplexo e num segundo abraço (precedido de um leve afastar para um último reconhecimento ocular), viram costas como se num duelo aprazado estivessem, caminham costas batendo com costas, abrindo passos infinitos em sentidos opostos, traçando uma recta (onde num dos seus pontos até há poucos segundos atrás ainda conversavam), cavando a distância que se espera vir a ser aligeirada. *1

Chamar-me-ei de escritor e envio esta primeira carta ao meu amigo.

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*1
Para ser correcto e baseado na geometria euclidiana que acima serviu de suporte, dir-se-ia que a conversa entre os amigos se deu no ponto médio do segmento de recta formado pelos dois personagens – considerando que a abertura de pernas será idêntica, logo a distância percorrida aproximada e a velocidade constante e igual - sendo estes a cabeça de seta de cada um de dois vectores simétricos em constante progressão e dilatação.Tretas... Bah! Gaita de nota...

Foto - MAL street sessions, 2008

`^`^***````+ºº-..,mnwww34

PAST TENSO

Naquele dia passei o tempo todo cheio de dor de cabeça! Tinha acordado cedo, já com a ideia de partir. Tinha já feito diversas coisas, que só aumentaram a confusão; e fui ainda a correr, numa luta contra o tempo, para apanhar esse comboio que sabia que me ia levar ao destino. Ao refúgio. A noite passei-a bem, nada de sobressaltos, mas os últimos dias antes da partida criaram uma tal sensação de desconforto dentro de mim que só pensava em sair dali! Este dia, o da partida; com todo o seu significado de despedida, foi mais de alívio que de tristeza. Eu queria sair dali, e a desculpa providencial de saída agendada serviu apenas como pretexto à fuga para o refúgio.

Cheguei a estas férias, eu e mais três, com a felicidade de quem vem para conquistar, de quem vem com a ideia de poder fazer algo por este amor que continuo sem saber se é só meu. Mas alguém se antecipou.

Naquele dia passei o tempo todo com dor de cabeça, talvez por pensar demasiado!

Pensar em mim e ela, eu perante ela, ela perante mim, como poderia tentar de novo o “nós”. Uma viagem de 11 horas de comboio, em pleno quente Agosto, na planura infinita alentejana, sem comida nem vontade nem lucidez e com a cabeça a latejar de pensamentos. Tentava compreender e explicar-me o que se tinha passado num método científico mental para me exorcizar ou decair. ´

Chego-me ao fim e vou tão esgotado, tão vazio, que não me lembro de mais nada senão o de preencher o estômago com algo que me apazigue a fome. Mais nada assomou aqui, nada de mais nada!

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Foto - de viagem a Évora e Arraiolos, Agosto de 2008

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EREMITÉRIO REDUX

1

O meu trabalho (sou arquitecto) consiste basicamente em agradar às pessoas, em dar-lhes uma casca em que se sintam confortáveis, em dar-lhes um mundo Playmobil mais que perfeito, adaptado à sua visão e escala e em que se cumpra o meu ideal de boa arquitectura (aos postulados “firmeza, beleza e utilidade” de Vitrúvio, junto ainda as virtudes essenciais: rigor, humildade e seriedade no traço de qualquer obra).

Trabalho num espaço que se me aparenta como um "deserto" monástico (à semelhança do do Mosteiro de Santa Cruz do Buçaco, único deserto monacal em Portugal) e onde trabalho pacientemente, burilando casas, compondo maquetes e amontoando esquissos. Considero-o como o meu Taliesin, um local quase mítico e talvez divino onde as belas coisas tomam forma. Como que telúricas, nascidas da terra e mentais, imaginadas na cabeça dos homens. 


Eu gosto desta reclusão de Belgais, gosto deste ascetismo, gosto de estar retirado recolhido e escrevendo, pelo menos tentando escrever. Gosto deste eremitério como o tenho e como o têm, aqui leio e contemplo sem agravo, sem perturbações. Gosto de, por vezes, a tempos, ser eremita, ser asceta, estar sem mais nada nem ninguém, a não ser eu próprio e o meu bater de coração, o pulsar do fluxo sanguíneo e as minhas ideias, só assim as posso expulsar convenientemente, sem ruído e sem impurezas, totalmente impolutas, confessando-as ininterruptamente (pois o silêncio propicia a criatividade) sobre o papel ou pantalha. 

E assim continuaria, indefinidamente, pois a felicidade é minha. E ao construir e projectar mais e sempre, projecto esse contentamento sobre os outros, já que a minha envolvente de trabalho é ideal para a criação, com frondosas árvores e bestiais animais. 

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Chave

(1) Marcus Vitruvius Pollio, arquitecto romano que estabeleceu: “utilitas, venustas e firmitas”, como os três pilares fundamentais da arquitectura.
(2) Taliesin - aldeia/ atelier idealizada e construída por FLW, o mestre Frank Lloyd Wright e que agora jaz como um sonho em ruínas. Távora chorou perante o ideal em decadência que encontrou.
(3) Belgais - empreendimento em Castelo Branco dedicado às artes, montado por Maria João Pires, nossa pianista.

Imagem - Detalhe de jardim em Shanghai, Setembro de 2011

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ENSAIO O SANGUE

Costumava espirrar sangue frequentemente quando era mais novo, por dá cá aquela palha. E este saía em jorros violentos de vermelho vivo e eu girava a cabeça, feito diversão de feira, arremessando para longe manchas de glóbulos viajantes.Hoje já não sou disto acometido, hoje ensaio o sangue.
Tantos que se autorizam de sangue azul e eu que sempre quis doar sangue. O meu líquido vital (que não a medieval linfa) não pode ser confundido na sua cor, o vermelho tomado por azul. Na unidade hematológica não o confundem, para eles será sempre encarnado e precioso e absolutamente necessário.

Os tais de sangue azul (eram nobres, eram), de sobranceria oca e pretensiosismo bacocos que se apeiem do pedestal e se apiedem de quem precisa desse néctar pretenso azul. Azul ou vermelho em ficção, mas sempre vermelho em realidade, essa “ambrósia” é fundamental para quem dela carece. Logo, percam essa falsa autoridade sobre a diferença na coloração. 

O sangue é na verdade todo igual, questões de sangue e irmãos de sangue todos tivemos e de todos fizemos. Como doadores sempre o cedemos por alguém (ou seja, num dado momento da vida, dedicámo-nos inteiramente a uma pessoa) e se uma mão não cortámos para um pacto assinar, assinámo-lo por palavras com significado ou num momento da infância ou de entrega amorosa. E laços de sangue perduram. Sangue sangrei por diversos amores desperdiçados e perdidos, por fugazes namores desencontrados. Enamorado, subia-me ao rubro o sangue, na face e nos vasos sanguíneos, fervendo pela amada do momento. Depois, empalidecia tudo, desde o sorriso inicial até à memória dos momentos acumulados, gelando-se-me o sangue, chorando lágrimas deste. Recrudesceu o fracasso, até agora. 

Vou finalmente assumir-me como dador de sangue, chegar ali e ceder o braço, num gesto fácil e benévolo, que não fiz até hoje porque não. Quero aprovar-me como benemérito, fazer a minha boa doação do dia. Oferendar as minhas plaquetas, leucócitos e eritrócitos a quem deles necessite, envoltos no aglutinador plasma. Usei e quase abusei deste glossário de sangue, espero estar cumprido o ensaio desta hemolinfa.

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Imagem - Cinelençol pelo MAL - Movimento Acorda Lisboa, Alameda, Lisboa em Julho de 2008

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MOMENTO EM SAVING PRIVATE RYAN

Visto em slow motion devia ser este o pior momento do cinema, o mais rude e cruel, mas assim, rápido como a vida, pode ser ainda mais brutal do que esta porque adveio da guerra, essa última satisfação do homem, essa de sobrevir sobre os outros - pela força da arma arremessada e da loucura e da tirania e da cor do vermelho expulso em sangue. 

Este não quer ser um manifesto, antes um comentário que já de si se manifesta, que já de si se contorce, por este momento do filme ‘Saving Private Ryan’, de Steven Spielberg. Falo do instante em que Mellish luta com Steamboat Willie, americano vs. alemão, puxando tudo o que de mau existe dentro deles, instintivamente e ainda mais, lutando, cegos cegos, para sobreviver um sobre o outro. Até à morte que foi, seca!

Mas falta resumir o antes, para perceber como mais dolorosa se torna ainda a visão destas imagens: Steamboat Willie foi libertado como único sobrevivente de um assalto a uma bateria alemã. Mellish é um judeu americano que recuperou uma faca da Juventude Hitleriana do cadáver de um soldado alemão. Mellish mostra a faca a uma coluna de já prisioneiros alemães e atira, satisfeito: ICH BIN JUDEN! JUDEN! Upham é outro soldado, tradutor, trazido à força para o meio da guerra e que a vem ainda encaixando. Upham contribuiu para que Willie fosse solto. Willie e Mellish lutam enquanto Upham espera em baixo, perdido.

Irónico é que tudo tenha convergido para que a lâmina tirada do bolso do casaco do cadáver alemão tenha entrado na luta pela mão de Mellish para depois vir a ser enterrada, lentamente, no coração deste. Willie não fez mais do que se esperava a um soldado, continuou a lutar e a matar, e nem os apelos do americano lhe serviram de travão, Chhh chhh, esvaindo-se e perdendo-se aos poucos.

Este breve momento de morte é dos mais duros e crus que já vi num filme, dos mais puros e insanos que presenciei no cinema! Não esperava que surgisse a morte assim, naquele instante, apesar de a aperceber esperando! 

Agarro-me ao estômago e extraio-me da cena. Nada é mais aterrador e visceral do que a morte lenta e assassina! E, mesmo que encenada, perturba porque evoca!

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Imagem - de Sarilhos Pequenos, Seixal

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7 ANOS APÓS O FIM DO MUNDO

Num bar apinhado apinhado espero pela palavra do outro que me acompanha, em conversa solta de toma lá dá cá. Passam sete anos desde o fim do mundo e neste bar cospem-se palavras em conversas resumidas de fundo de copo, corpo seco, corpo copo, copo mundano, tocando-se as letras e as frases e as palavras, roçando ao de leve pela boca e língua, pairando sobre a cerveja loira, chocando com outras palavras no ar – que são muitas no meio de tanto ruído, perdendo-se algumas, misturando-se outras, entaramelando o discurso confuso – e apartando-se no ouvido da companhia querendo ser ouvidas. Se passassem só três após o fim do mundo seria igual e não menos trapalhão, conversar assim no meio do caos!

Estou num lugar de passagem e não existe nada mais incómodo do que estar num bar num ponto de escape! Sou mil vezes tocado e reconhecido por carteiras e cotovelos em assalto de saída, mil vezes brota no meu pé o peso de outro calcando em decalque sem desculpas e ainda sou vitaminado inúmeras vezes por líquidos em sobressalto! Que merda, não poderia estar mais pacífico sem toque de bruto como se estivera em casa? 

Sete anos após algo de apocalíptico que tinha ou não que acontecer eis que este Doutor Divago tenta tudo colocar e catalogar e explicar por palavras e letras soltas. Estou demasiado cansado hoje para ser provocatório, provo-me no chão do colchão acompanhado por esta ninfa provocante – devoro-a infinito!

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Foto - noite branca no Bairro Alto, Lisboa

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DINO DE MILO

Tenho um apetite excêntrico por mexer no barro, em argila, em moldar com as minhas mãos seja o que fôr, não sei. Em deixar a pele secar em contacto prolongado com os dedos na matéria, em formá-la, deformá-la, conformá-la ao que quero, em apetites dos digitais e rebates de anseios. 

Exculpo bonecos em argila porque. Não o sei explicar. Será de antes, da ânsia de apertar o seio materno, de o adaptar à minha boca terno e sequioso e assim me prover? Será de ser ser humano e assim necessariamente inquieto das terminações dos membros superiores, cotos inventores? Talvez porque sempre é de mim, que algo se adapta ao que quero que seja a matéria prima em bruto sem forma, disforme.

As metamorfoses por que passa um objecto nas minhas mãos só me completa no final, ao conseguir algo que reconheça como algo – ainda que levemente inexistente, abstracto.

No outro dia improvisava com um pedaço de argila na mão. Brincava, puxava, tentava fazer qualquer coisa que nem sequer ainda tinha imaginado, numa jam session de barro, arrancando ali para o pôr depois novamente aqui, alimentando com um pouco de água a massa já a secar em contacto com o ar e com a pele, truncando outro pedaço deste lado, procurando encontrar um ícone escondido, por revelar.

Saiu-me um dinossauro, porquê? Surge a ideia de que é sempre novidade, jogo roleta, puxo a alavanca da sorte, porque nunca sei o que sairá quando me ponho a perturbar – quase maquinalmente – o barro. Saiu um dinossauro, saiu. Sauro, dinossáurio, sáurio, sei lá... Como é mesmo o nome... saurópode, isso. Então, saiu-me um saurópode do encontro da mão com o material, pela mão saiu.

Como qualquer outra coisa por mim criada em argila e após estar terminada deixo-a sempre ao relento para que enrijeça, para que se fixe, para que perca toda a dispensável água. Sei que como pai de algo de mim nascido devia ter outra preocupação por filho tão novo, ainda agora posto ao mundo. Perdão, mas não tenho mufla, e o ar do exterior e da noite é o que há de melhor para que este objecto se ganhe!

Mas pela manhã é a catástrofe! Encontro o animal decepado de todos os seus membros, dos quatro e da cauda, soltas e perdidas, inútil juntá-las e colá-las! Para quem conhece os saurópodes, além de saber que é um bicho morto, já extinto e visível por aí em ossadas e reconstituições de livros, também sabe que era um animal de membros longos e de cauda comprida, todo ele vasto e esguio, talvez impossível de fixar em barro sem entrever este desfecho de divisão a não ser auxiliando a estreiteza do material nestas terminações com algum recurso, algum mecanismo de fixação.

Então sobreveio-me a ideia – claro! Assim toda a figura ganha outra dimensão, outra lógica! Acabei de criar o Dino de Milo, perfeito!

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Imagem - peças de argila, Coimbra, 2004/5?

20080117

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ESTADIAR

Fernando Pessoa morreu em 30 de Novembro de 1935, no Hopital de Saint Louis (Hospital dos Franceses), ao Bairro Alto. O edifício ainda existe com a mesma função e nome, encaixado entre a Rua da Rosa e a de São Boaventura e onde vai morrer a de Luz Soriano (do outro lado do pequeno adro espera-se uma nova pousada que está quase quase concluída). A fachada da casa de saúde orientada para a Rosa e a do beco ordinário que liga esta à Luz Soriano, vivem preenchidas de cartazes e stencils, que já me conhecem de tanto parar a contemplá-los, quase todas as noites e fins de tarde. 

Recordo aquela apoteose de som no Catacumbas em noite de Jam de Segunda-Feira. Saíramos às duas completamente exaustos, com os músicos a abraçarem-nos logo depois de nos terem elevado pela música de sete vezes sei lá quantos instrumentistas a improvisar e com eles os instrumentos todos! À Segunda-Feira o Jazz no Catacumbas, à Terça Blues na mesma casa, à Quarta Jazz no Lux e todos os dias - tirando o Domingo e a Segunda, o HCP. 

Algumas vezes também fez parte do meu tempo perdido em fim de semana desaparecido, deixar-me estar pelo Adamastor até de dia, até ao dia raiar, até não existir mais escuridão; muito depois do Adamastor e do Noobai e mesmo do Souk terem fechado. Sabem que existe por aqui um hostel, bem aqui em Santa Catarina? Se vogo perdido por estas ruas novamente é por gostar demasiado delas e ainda mais quando vazias de gente, sendo só terra e ar, pedra e silêncio, quietude de caminhada e eu com elas.

Se recordo mais, ainda me surgem outros motivos para prolongar o passeio madrugador. Todas as loucuras que se cometem por amor, surgem no início ou no fim de uma relação; ou no momento em que a felicidade é máxima e em tudo as pessoas se excedem ou no fim, quando já existe a percepção de que algo vai mal e em que tudo tentamos para revitalizar o que já irremediavelmente vai fenecendo. Não que o meio da relação seja terreno infértil, não o é, de todo, será é menos propenso a delírios e excessos.

Depois de mais uma noite de Sábado a Estadiar – beber, estar e conversar no Estádio - com um dos meus mais fortes ex-namores e, já em presumível e depois materializado fim de longa relação, apeteceu-nos ir até ao Pavilhão Chinês para beber um chá e absorver as miniaturas, todos os pequenos gadjets e action figures. Nesta deslumbrante ex-mercearia, os mais tarde também ex, decidiram partir numa última loucura.

Decidimos embarcar até ao Algarve em loucura de Sábado à noite, uma e pico da manhã. Correndo correndo pela estrada - os que depois se apartariam e que talvez já fugissem de algo prenunciado - chegaram com o luminoso dia a erguer-se e deitaram-se na praia, recebendo o Sol no seu inexorável percurso de morte e renascimento.

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Foto - de viagem a Shanghai, vista desde o Bund, Setembro 2011

20080116

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SUNDAY NIGHT

No início de uma noite de um Domingo qualquer, corto o Rossio na diagonal vindo da Rua dos Sapateiros em direcção aos Restauradores - procuro o Beira-Gare para beber o meu café de sempre e para com isso matar o dia e cimentar a minha noite. Saí agora mesmo do resistente Grémio Lisbonense, velhinha casa de 165 anos posta bem em frente dessa magnífica peça de Arte Nova que é o Animatógrafo do Rossio, monumento do cinema a completar cem anos de fundação para o fim deste ano. 

Corto a praça na diagonal para atalhar caminho e sobretudo para escapar a encarar o Homem Elefante, o Monstro do Rossio, que para mim tem tanto de assustador como de encantatório. Uma amiga minha instalada em Inglaterra contou-me que o apanhou num programa de televisão inglês, convite que surgiu com vista a resolver o seu problema por via de cirurgia; não me soube adiantar mais nada, não conhecia o desfecho da história. De toda a maneira continuo sempre a desviar-me de o encarar novamente, mais por ele do que por mim, mais por respeito do que por repulsa.

Coloco-me ao balcão do Beira-Gare entre loucos, solitários e bêbados habituais, ainda incomodado pela nova lei restritiva do tabaco - acompanho sempre um café com um cigarro, e sigo ainda desabituado por esta nova restrição. Mato a tarde que espreita ainda em tons de vermelho vivo e ocre, amareloazulando o resto de dia no firmamento. Ao meu lado um gigante afável gorgoleja e sorve o café em altas exclamações, atirando a cabeça para trás de cada vez que leva a chávena até aos lábios.

Especulam sobre mim, apelidando-me de bom observador. Talvez que registe demasiadamente as coisas que me rodeiam e lhes dê o merecido valor, ao invés de outros que ou nem nelas reparam por seguirem distraídos ou talvez que não lhes atribuam significação de monta para que se lhes mantenham as imagens ou mesmo que nem saiam para que episódios de interesse lhes surjam. Sou mais um bom registador, um colector de memórias, um caçador de imagens, a minha mente é um álbum recente e infinito de fotografias a cores e outro mais antigo a preto e branco e ocre de tudo o que faço e que me surge. Este último vai-se fragmentando e diluindo.

Cuspo um pouco de tosse e agasalho-me para acolher a noite, recebo o cigarro na boca e sigo, sei que terei mais uma noite de copos no Estádio, é sempre ali que me acabo, sempre ali que me reinvento, sempre ali que me desejo e sempre, sempre ali, que inicio mais uma periódica e saborosa destruição do meu sistema digestivo. Serpenteio pelas ruas da cidade para lá chegar, a esse encontro de amigos tão habitual e querido e, antes de lá chegar, ainda deparo com tantas e tantas figuras de Lisboa, 'que me fazem duvidar' de que o ser humano já não tem mais nada para dar de surpreendente e inventivo.

Um velho aninhado no chão toca harmónica, acompanhando o som que se solta de um pequeno orgão e agitando uma caixa com contas e missangas; tenta tocar o 'Edelweiss' e recorda-me das Cocorosie. Outro ancião mais à frente faz o mesmo gesto mas com uma guitarra desfeita, já sem braço - não identifico o som que se lhe solta das cordas roídas. Uma loira rapariga - não lhe fixei o país de origem - pinta pequenos quadros que me parecem levemente esotéricos. Outro tipo mais à frente grita com os cães enquanto toca flauta em frente à Basílica dos Mártires. O grupo que o acompanha costuma andar por aqui aos malabares, às massas e ao fogo, outro pequeno grupo acompanha-os irregularmente com monociclo. De quando em quando apanho o tipo do xilofone, em vestes de Tarzan e face estanhada.

A noite arranca em jactos de imperial após imperial lento espumando em conversa desalinhada, à vez tonta, à vez lógica, para o fim já completamente em desconstrução! Eu marquei o território em vómito por este sítio todo, pela casa de banho algumas vezes, pela rua outras quantas e pelo beco lateral incontáveis vezes, sempre guardando para mim - o mais possível - tão medonho desfecho. Na maior parte das vezes servia este como momento de pausa intercalar e logo seguia eu, em ébria montada. 

A noite de domingo é sempre tão solitária para quem vive sozinho e não deseja ter a vida preenchida com um corpo ao lado todos os dias; consigo chegar a casa não sei como e olho os 3 lances de escada que me esperam: Stairway to Heaven, 30 e tal degraus de custoso montanhismo. Algo que ainda me falta perceber realmente é como de tantas e tantas vezes que aqui cheguei, neste estado, neste descontrolo, pedindo conforto e repouso, não vislumbrando à minha frente não mais que algo semelhante a umas assustadoras escadas rolantes em mecânico movimento nos meus sentidos e cabeça; que nunca tenha caído, nem sequer resvalado. 

Os espasmos da cerveja agarram-me ao solo e da única vez que por elas deslizei foi à descida e estava totalmente sóbrio. Desta vez porém, adormeci no patamar encostado à parede para acordar apenas pela manhã; parece que tropecei no sono e cabeceei no estuque deste vão de escada.

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Imagem - minha mão em Praga, 2009

20080111

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PESSOAS DE FORA

"Digo underground porque para mim são coisas que nunca imaginaria em Lisboa"

Moro no Bairro e começo sempre o fim de tarde com um café na Brasileira do Chiado, com um café e um cigarro comprado aqui mesmo, nesta tabacaria à francesa. A minha vista voa sobre a cabeça dos turistas teimosamente constantes e poisa sobre este ou aquele detalhe da nossa história exposta em pinceladas: Nery, Almada, Viana, Palolo, Vieira e tantos, tantos outros! E o Pessoa lá fora e cá dentro, em duplicado, feito bronze e feito em tinta! Poiso o café e alcanço um guardanapo, olhando para as mesas para ver como estão preenchidas. Saco de um cigarro e saio, empurrando-o goela abaixo.

Espero pela amizade; chega agora esta amiga de fora, em visita, caminha agora desde Santa Apolónia até aqui, escadarolando pelo atalho da estação de metro do Chiado. Tinha-lhe explicado isto por telefone — dispensas as pernas, eleva-te o mecanismo.Moras no bairro, em que bairro? — pergunta-me. Ora, no Bairro, the block, el barrío, the one and only! Este! Conhece tão pouco de LX e o que conhece são imagens difusas de memória de uma visita quando pequena.Adoro quando me visitam amigos de fora, tenho sempre o maior prazer em lhes servir de guia, de cicerone. Isto é do meu maior contentamento. 

Mesmo não sendo de Lisboa já aqui estou há algum tempo e já sinto a cidade como minha e eu como sendo já dela. Tracei mentalmente o programa da noite, enquanto caminhava entre Casa e a Brasileira, tropeçando aqui numa pedra solta da calçada da Atalaia e ali em restos da noite de ontem junto ao Mezcal; fugindo sempre aos Chhh Chh, os dealers de esquina, sempre presentes e já de plantão. Olho para o chão e recuso a bolota, quando me tentam vender a coca já a minha mão se agita em não não.

Esta droga da treta pode enganar turistas de dias, mas eu nunca arrisco — nem em desespero — por essa droga cortada a aspirina! Invento sempre respostas ou recuso-me sequer a responder: já tenho, hoje não, queres, também vendo… Chhh Chh.Levo-a até ao Adamastor para ver os stencils e dar-lhe a comer uma tosta com queijo de cabra, tomate e manjericão a ver o Tejo, acompanhando-a com uma bruschetta. Adoro o Noobai, sinto-me sempre bem aqui, mas mais de tarde, desenhando com o sol por de cima. E decido começar a noite no Estádio, esse poiso perfeito para uma boa conversa, entre pessoal do teatro e de outras artes, por onde andou também Cesariny e onde numa mão tenho uma imperial e na outra amendoins. Que tal estadiar, gostas do sítio, vês o letreiro? Era uma leitaria! — Gosto sim, curto tascas e amo aquela jukebox, vou pôr algo a tocar, passa moedinha.

Esforço-me por lhe mostrar o melhor que conheço da cidade e até lhe falo do underground. Que queres dizer com isso do underground? Não é que seja o desconhecido, não é nada que seja vedado a todos e acessível só a alguns, é só por onde costumo andar e que me permito mostrar com deslumbramento.Digo underground porque para mim são coisas que nunca imaginaria em Lx e nem o conhecia antes de cá estar. Passamos pelo Catacumbas para um café e um jazzinho ambiente — toca Dizzy no momento. Acendo a vela e falo-lhe do Crew Hassan, da ginginha do Eduardino e da Ginginha, do Santiago Alquimista, do Bacalhoeiro, da Casa do Alentejo, do Cefalópode, da ZDB, do Chapitô, do Maxime e do HCP, de tudo. Por esta Lisboa me vejo e me sinto. Comento sobre o Napron e as Primas e provoco-a com a ideia de uma nata da padaria da Rua da Rosa. Só à 1 hora, ainda é bem cedo, depois. Quero mostrar-lhe o cedro do Príncipe Real, ficará fascinada! Entre aqui agora e o apagar da vela com dedos molhados passamos ainda pelo Loucos e Sonhadores e pelo Pavilhão Chinês.

Já bem tocados de dois litros de cerveja, corremos ainda uma dezena de bares em azáfama de álcool. Caxuxa, 21 do Bairro, Clube da Esquina, Arroz Doce, sei lá, perdi-me num turbilhão de marcas de cerveja que nem distingo o que bebo sentado no lancil ou até sequer em que rua estou. Alguém me serve sentando uma garrafa de Corona na mão e eu aceito, escorrendo-a para dentro. Antes ainda deu tempo para ir à padaria buscar um pão com chouriço e voltar para ver todos os bares a fecharem-nos a porta. Descrevo-lhe os bares e discos do Cais e digo-lhe que odeio tudo aquilo, a não ser as moelas das 4 da manhã por detrás do mercado. Hoje não quero ir ao Lux nem ao Frágil.

Que tal o Finalmente? Se quiseres. Não sei como estamos agora no Camões, mas bem, ainda dá para lhe mostrar a Bica e o Bicaense, atalhando caminho para o clube perto da Alegria. Sorvi demasiada cerveja e estou quase esgotado, prefiro seguir daqui para casa, foi completa a noite, foi cheia a visita, espero que guardes memória. Adorei.

Acordo pela noite várias vezes e poluo-a continuamente comigo próprio e com toda a minha libido. Que melhor complemento para uma noite frenética do que uma história de cama doce e selvagem. Como gosto de mostrar esta minha cidade! Amanhã vamos ao Maria Matos comer um sushi e ver um filme no King, talvez Gulbenkian pela tarde. O programa prolonga-se, o próximo capítulo encerra este.

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Texto publicado no Guia da Noite, segmento Zoo Urbano, entretanto descontinuado, Outubro de 2007

Imagem - lomo no Prater, Viena, meados de 2008/09

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EPIFANIA

''Agarro-te por debaixo do Crew Hassan e tento amar-te''

Uma história da noite começa sempre pela tarde e desfia o dia todo que a antecedeu. Uma história p'la noite fecha todo o dia e a manhã que a sustenta. Uma boa história na noite escura, muitas vezes ainda se vai concluir já com o dia a clarear. Nesta bela noite que escrevo noutro dia, ainda recordo como foi a tarde e o nascer pelo Levante, agigantando-se o Astro no céu, girando para Poente e fechando-me a história que aqui conto.

Agarro-te por debaixo do Crew Hassan e tento amar-te, coisa que não queres, nem mesmo na penumbra deste pequeno átrio. Eu tenho duas mulheres a meio e uma que tive por inteiro já não estava por aqui — mas é a esta que tento agarrar agora! O desastre seria se alguma das outras me visse agora, assim, tentando misturar-me contigo em beijos e cabelos.A noite tenta cair quando nos separamos, talvez para sempre, não o sei.

Caminho pela Portas de Santo Antão até ao Rossio e encontro uma cara que me aparece sempre, para aonde quer que saia — reconheço-o como alguém que pertencia a um grupo com quem saía há uns tempos atrás, mas que agora já nada significa para mim.Subo para o meu Bairro, para a minha casa; tropeçando em histórias pelas esquinas todas, enquanto cai a noite fechando as ruas e as casas à luz diurna. 

Os loucos por aqui e por ali; os vendedores de pólen, de coca e chamon em todas as esquinas, cruzamentos e apeadeiros; os aliciadores poliglotas postos com mel e lábia junto às casas de fado e restaurantes; muitos turistas fauna e suburbia presentes.Cruzo-me com uma exuberante Leigh Bowery toda pintada e maquilhada; com uma já muito bêbada senhora a perguntar pelo 'bar todo fox, onde se pode beber mais um copinho assim fininho'. Lamento, mas não posso ajudá-la — não saberia como! Mais à frente, salta-me um tipo com a máscara do Scream posta sobre a cara e que segue gritando pela rua acima, até junto da decadente mole humana sempre presente ao fundo da Rua da Atalaia. Ao dobrar uma esquina deparo-me com um talhante à espera da hora de fecho; recomendo-lhe mentalmente o Delicatessen. 

Entro na tasca onde entro sempre para um café antes de casa e acomodo-me ao balcão, entre muitos e solitários bebedolas:comentam a mesma mulher de ainda há pouco, o futebol na televisão e a imperial sobre a mesa. Um alguém goza com outro alguém e eu pago e recebo os trocados enquanto aprecio as erasmos na mesa por detrás de mim — espanholas, tías majas!

Ameaçava a chuva e rebenta agora, em pequenos farrapos de líquido, expulsando as poucas pessoas que ainda espreitavam pelas ruas. A água acaricia a calçada e vai tacteando as velhas fachadas grafitadas, acumulando-se entre as pedras e ecoando pelas goteiras. Olhando para cima tive uma revelação, o Bairro cada vez me parece mais pequeno, cada vez mais se some, vai encolhendo a cada volta que faço, a cada passo!

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Texto publicado no Guia da Noite, segmento Zoo Urbano, entretanto descontinuado, Outubro de 2007

Desenho - série Lisbon Walkers