20080126

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ENSAIO O SANGUE

Costumava espirrar sangue frequentemente quando era mais novo, por dá cá aquela palha. E este saía em jorros violentos de vermelho vivo e eu girava a cabeça, feito diversão de feira, arremessando para longe manchas de glóbulos viajantes.Hoje já não sou disto acometido, hoje ensaio o sangue.
Tantos que se autorizam de sangue azul e eu que sempre quis doar sangue. O meu líquido vital (que não a medieval linfa) não pode ser confundido na sua cor, o vermelho tomado por azul. Na unidade hematológica não o confundem, para eles será sempre encarnado e precioso e absolutamente necessário.

Os tais de sangue azul (eram nobres, eram), de sobranceria oca e pretensiosismo bacocos que se apeiem do pedestal e se apiedem de quem precisa desse néctar pretenso azul. Azul ou vermelho em ficção, mas sempre vermelho em realidade, essa “ambrósia” é fundamental para quem dela carece. Logo, percam essa falsa autoridade sobre a diferença na coloração. 

O sangue é na verdade todo igual, questões de sangue e irmãos de sangue todos tivemos e de todos fizemos. Como doadores sempre o cedemos por alguém (ou seja, num dado momento da vida, dedicámo-nos inteiramente a uma pessoa) e se uma mão não cortámos para um pacto assinar, assinámo-lo por palavras com significado ou num momento da infância ou de entrega amorosa. E laços de sangue perduram. Sangue sangrei por diversos amores desperdiçados e perdidos, por fugazes namores desencontrados. Enamorado, subia-me ao rubro o sangue, na face e nos vasos sanguíneos, fervendo pela amada do momento. Depois, empalidecia tudo, desde o sorriso inicial até à memória dos momentos acumulados, gelando-se-me o sangue, chorando lágrimas deste. Recrudesceu o fracasso, até agora. 

Vou finalmente assumir-me como dador de sangue, chegar ali e ceder o braço, num gesto fácil e benévolo, que não fiz até hoje porque não. Quero aprovar-me como benemérito, fazer a minha boa doação do dia. Oferendar as minhas plaquetas, leucócitos e eritrócitos a quem deles necessite, envoltos no aglutinador plasma. Usei e quase abusei deste glossário de sangue, espero estar cumprido o ensaio desta hemolinfa.

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Imagem - Cinelençol pelo MAL - Movimento Acorda Lisboa, Alameda, Lisboa em Julho de 2008

1 comentário:

  1. o tabbuchi tem um texto chamado "minha querida hemoglobina"... assim que o li lembrei-me deste teu ensaio :)

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