20080111

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EPIFANIA

''Agarro-te por debaixo do Crew Hassan e tento amar-te''

Uma história da noite começa sempre pela tarde e desfia o dia todo que a antecedeu. Uma história p'la noite fecha todo o dia e a manhã que a sustenta. Uma boa história na noite escura, muitas vezes ainda se vai concluir já com o dia a clarear. Nesta bela noite que escrevo noutro dia, ainda recordo como foi a tarde e o nascer pelo Levante, agigantando-se o Astro no céu, girando para Poente e fechando-me a história que aqui conto.

Agarro-te por debaixo do Crew Hassan e tento amar-te, coisa que não queres, nem mesmo na penumbra deste pequeno átrio. Eu tenho duas mulheres a meio e uma que tive por inteiro já não estava por aqui — mas é a esta que tento agarrar agora! O desastre seria se alguma das outras me visse agora, assim, tentando misturar-me contigo em beijos e cabelos.A noite tenta cair quando nos separamos, talvez para sempre, não o sei.

Caminho pela Portas de Santo Antão até ao Rossio e encontro uma cara que me aparece sempre, para aonde quer que saia — reconheço-o como alguém que pertencia a um grupo com quem saía há uns tempos atrás, mas que agora já nada significa para mim.Subo para o meu Bairro, para a minha casa; tropeçando em histórias pelas esquinas todas, enquanto cai a noite fechando as ruas e as casas à luz diurna. 

Os loucos por aqui e por ali; os vendedores de pólen, de coca e chamon em todas as esquinas, cruzamentos e apeadeiros; os aliciadores poliglotas postos com mel e lábia junto às casas de fado e restaurantes; muitos turistas fauna e suburbia presentes.Cruzo-me com uma exuberante Leigh Bowery toda pintada e maquilhada; com uma já muito bêbada senhora a perguntar pelo 'bar todo fox, onde se pode beber mais um copinho assim fininho'. Lamento, mas não posso ajudá-la — não saberia como! Mais à frente, salta-me um tipo com a máscara do Scream posta sobre a cara e que segue gritando pela rua acima, até junto da decadente mole humana sempre presente ao fundo da Rua da Atalaia. Ao dobrar uma esquina deparo-me com um talhante à espera da hora de fecho; recomendo-lhe mentalmente o Delicatessen. 

Entro na tasca onde entro sempre para um café antes de casa e acomodo-me ao balcão, entre muitos e solitários bebedolas:comentam a mesma mulher de ainda há pouco, o futebol na televisão e a imperial sobre a mesa. Um alguém goza com outro alguém e eu pago e recebo os trocados enquanto aprecio as erasmos na mesa por detrás de mim — espanholas, tías majas!

Ameaçava a chuva e rebenta agora, em pequenos farrapos de líquido, expulsando as poucas pessoas que ainda espreitavam pelas ruas. A água acaricia a calçada e vai tacteando as velhas fachadas grafitadas, acumulando-se entre as pedras e ecoando pelas goteiras. Olhando para cima tive uma revelação, o Bairro cada vez me parece mais pequeno, cada vez mais se some, vai encolhendo a cada volta que faço, a cada passo!

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Texto publicado no Guia da Noite, segmento Zoo Urbano, entretanto descontinuado, Outubro de 2007

Desenho - série Lisbon Walkers

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