20080111

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PESSOAS DE FORA

"Digo underground porque para mim são coisas que nunca imaginaria em Lisboa"

Moro no Bairro e começo sempre o fim de tarde com um café na Brasileira do Chiado, com um café e um cigarro comprado aqui mesmo, nesta tabacaria à francesa. A minha vista voa sobre a cabeça dos turistas teimosamente constantes e poisa sobre este ou aquele detalhe da nossa história exposta em pinceladas: Nery, Almada, Viana, Palolo, Vieira e tantos, tantos outros! E o Pessoa lá fora e cá dentro, em duplicado, feito bronze e feito em tinta! Poiso o café e alcanço um guardanapo, olhando para as mesas para ver como estão preenchidas. Saco de um cigarro e saio, empurrando-o goela abaixo.

Espero pela amizade; chega agora esta amiga de fora, em visita, caminha agora desde Santa Apolónia até aqui, escadarolando pelo atalho da estação de metro do Chiado. Tinha-lhe explicado isto por telefone — dispensas as pernas, eleva-te o mecanismo.Moras no bairro, em que bairro? — pergunta-me. Ora, no Bairro, the block, el barrío, the one and only! Este! Conhece tão pouco de LX e o que conhece são imagens difusas de memória de uma visita quando pequena.Adoro quando me visitam amigos de fora, tenho sempre o maior prazer em lhes servir de guia, de cicerone. Isto é do meu maior contentamento. 

Mesmo não sendo de Lisboa já aqui estou há algum tempo e já sinto a cidade como minha e eu como sendo já dela. Tracei mentalmente o programa da noite, enquanto caminhava entre Casa e a Brasileira, tropeçando aqui numa pedra solta da calçada da Atalaia e ali em restos da noite de ontem junto ao Mezcal; fugindo sempre aos Chhh Chh, os dealers de esquina, sempre presentes e já de plantão. Olho para o chão e recuso a bolota, quando me tentam vender a coca já a minha mão se agita em não não.

Esta droga da treta pode enganar turistas de dias, mas eu nunca arrisco — nem em desespero — por essa droga cortada a aspirina! Invento sempre respostas ou recuso-me sequer a responder: já tenho, hoje não, queres, também vendo… Chhh Chh.Levo-a até ao Adamastor para ver os stencils e dar-lhe a comer uma tosta com queijo de cabra, tomate e manjericão a ver o Tejo, acompanhando-a com uma bruschetta. Adoro o Noobai, sinto-me sempre bem aqui, mas mais de tarde, desenhando com o sol por de cima. E decido começar a noite no Estádio, esse poiso perfeito para uma boa conversa, entre pessoal do teatro e de outras artes, por onde andou também Cesariny e onde numa mão tenho uma imperial e na outra amendoins. Que tal estadiar, gostas do sítio, vês o letreiro? Era uma leitaria! — Gosto sim, curto tascas e amo aquela jukebox, vou pôr algo a tocar, passa moedinha.

Esforço-me por lhe mostrar o melhor que conheço da cidade e até lhe falo do underground. Que queres dizer com isso do underground? Não é que seja o desconhecido, não é nada que seja vedado a todos e acessível só a alguns, é só por onde costumo andar e que me permito mostrar com deslumbramento.Digo underground porque para mim são coisas que nunca imaginaria em Lx e nem o conhecia antes de cá estar. Passamos pelo Catacumbas para um café e um jazzinho ambiente — toca Dizzy no momento. Acendo a vela e falo-lhe do Crew Hassan, da ginginha do Eduardino e da Ginginha, do Santiago Alquimista, do Bacalhoeiro, da Casa do Alentejo, do Cefalópode, da ZDB, do Chapitô, do Maxime e do HCP, de tudo. Por esta Lisboa me vejo e me sinto. Comento sobre o Napron e as Primas e provoco-a com a ideia de uma nata da padaria da Rua da Rosa. Só à 1 hora, ainda é bem cedo, depois. Quero mostrar-lhe o cedro do Príncipe Real, ficará fascinada! Entre aqui agora e o apagar da vela com dedos molhados passamos ainda pelo Loucos e Sonhadores e pelo Pavilhão Chinês.

Já bem tocados de dois litros de cerveja, corremos ainda uma dezena de bares em azáfama de álcool. Caxuxa, 21 do Bairro, Clube da Esquina, Arroz Doce, sei lá, perdi-me num turbilhão de marcas de cerveja que nem distingo o que bebo sentado no lancil ou até sequer em que rua estou. Alguém me serve sentando uma garrafa de Corona na mão e eu aceito, escorrendo-a para dentro. Antes ainda deu tempo para ir à padaria buscar um pão com chouriço e voltar para ver todos os bares a fecharem-nos a porta. Descrevo-lhe os bares e discos do Cais e digo-lhe que odeio tudo aquilo, a não ser as moelas das 4 da manhã por detrás do mercado. Hoje não quero ir ao Lux nem ao Frágil.

Que tal o Finalmente? Se quiseres. Não sei como estamos agora no Camões, mas bem, ainda dá para lhe mostrar a Bica e o Bicaense, atalhando caminho para o clube perto da Alegria. Sorvi demasiada cerveja e estou quase esgotado, prefiro seguir daqui para casa, foi completa a noite, foi cheia a visita, espero que guardes memória. Adorei.

Acordo pela noite várias vezes e poluo-a continuamente comigo próprio e com toda a minha libido. Que melhor complemento para uma noite frenética do que uma história de cama doce e selvagem. Como gosto de mostrar esta minha cidade! Amanhã vamos ao Maria Matos comer um sushi e ver um filme no King, talvez Gulbenkian pela tarde. O programa prolonga-se, o próximo capítulo encerra este.

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Texto publicado no Guia da Noite, segmento Zoo Urbano, entretanto descontinuado, Outubro de 2007

Imagem - lomo no Prater, Viena, meados de 2008/09

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