20080116

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SUNDAY NIGHT

No início de uma noite de um Domingo qualquer, corto o Rossio na diagonal vindo da Rua dos Sapateiros em direcção aos Restauradores - procuro o Beira-Gare para beber o meu café de sempre e para com isso matar o dia e cimentar a minha noite. Saí agora mesmo do resistente Grémio Lisbonense, velhinha casa de 165 anos posta bem em frente dessa magnífica peça de Arte Nova que é o Animatógrafo do Rossio, monumento do cinema a completar cem anos de fundação para o fim deste ano. 

Corto a praça na diagonal para atalhar caminho e sobretudo para escapar a encarar o Homem Elefante, o Monstro do Rossio, que para mim tem tanto de assustador como de encantatório. Uma amiga minha instalada em Inglaterra contou-me que o apanhou num programa de televisão inglês, convite que surgiu com vista a resolver o seu problema por via de cirurgia; não me soube adiantar mais nada, não conhecia o desfecho da história. De toda a maneira continuo sempre a desviar-me de o encarar novamente, mais por ele do que por mim, mais por respeito do que por repulsa.

Coloco-me ao balcão do Beira-Gare entre loucos, solitários e bêbados habituais, ainda incomodado pela nova lei restritiva do tabaco - acompanho sempre um café com um cigarro, e sigo ainda desabituado por esta nova restrição. Mato a tarde que espreita ainda em tons de vermelho vivo e ocre, amareloazulando o resto de dia no firmamento. Ao meu lado um gigante afável gorgoleja e sorve o café em altas exclamações, atirando a cabeça para trás de cada vez que leva a chávena até aos lábios.

Especulam sobre mim, apelidando-me de bom observador. Talvez que registe demasiadamente as coisas que me rodeiam e lhes dê o merecido valor, ao invés de outros que ou nem nelas reparam por seguirem distraídos ou talvez que não lhes atribuam significação de monta para que se lhes mantenham as imagens ou mesmo que nem saiam para que episódios de interesse lhes surjam. Sou mais um bom registador, um colector de memórias, um caçador de imagens, a minha mente é um álbum recente e infinito de fotografias a cores e outro mais antigo a preto e branco e ocre de tudo o que faço e que me surge. Este último vai-se fragmentando e diluindo.

Cuspo um pouco de tosse e agasalho-me para acolher a noite, recebo o cigarro na boca e sigo, sei que terei mais uma noite de copos no Estádio, é sempre ali que me acabo, sempre ali que me reinvento, sempre ali que me desejo e sempre, sempre ali, que inicio mais uma periódica e saborosa destruição do meu sistema digestivo. Serpenteio pelas ruas da cidade para lá chegar, a esse encontro de amigos tão habitual e querido e, antes de lá chegar, ainda deparo com tantas e tantas figuras de Lisboa, 'que me fazem duvidar' de que o ser humano já não tem mais nada para dar de surpreendente e inventivo.

Um velho aninhado no chão toca harmónica, acompanhando o som que se solta de um pequeno orgão e agitando uma caixa com contas e missangas; tenta tocar o 'Edelweiss' e recorda-me das Cocorosie. Outro ancião mais à frente faz o mesmo gesto mas com uma guitarra desfeita, já sem braço - não identifico o som que se lhe solta das cordas roídas. Uma loira rapariga - não lhe fixei o país de origem - pinta pequenos quadros que me parecem levemente esotéricos. Outro tipo mais à frente grita com os cães enquanto toca flauta em frente à Basílica dos Mártires. O grupo que o acompanha costuma andar por aqui aos malabares, às massas e ao fogo, outro pequeno grupo acompanha-os irregularmente com monociclo. De quando em quando apanho o tipo do xilofone, em vestes de Tarzan e face estanhada.

A noite arranca em jactos de imperial após imperial lento espumando em conversa desalinhada, à vez tonta, à vez lógica, para o fim já completamente em desconstrução! Eu marquei o território em vómito por este sítio todo, pela casa de banho algumas vezes, pela rua outras quantas e pelo beco lateral incontáveis vezes, sempre guardando para mim - o mais possível - tão medonho desfecho. Na maior parte das vezes servia este como momento de pausa intercalar e logo seguia eu, em ébria montada. 

A noite de domingo é sempre tão solitária para quem vive sozinho e não deseja ter a vida preenchida com um corpo ao lado todos os dias; consigo chegar a casa não sei como e olho os 3 lances de escada que me esperam: Stairway to Heaven, 30 e tal degraus de custoso montanhismo. Algo que ainda me falta perceber realmente é como de tantas e tantas vezes que aqui cheguei, neste estado, neste descontrolo, pedindo conforto e repouso, não vislumbrando à minha frente não mais que algo semelhante a umas assustadoras escadas rolantes em mecânico movimento nos meus sentidos e cabeça; que nunca tenha caído, nem sequer resvalado. 

Os espasmos da cerveja agarram-me ao solo e da única vez que por elas deslizei foi à descida e estava totalmente sóbrio. Desta vez porém, adormeci no patamar encostado à parede para acordar apenas pela manhã; parece que tropecei no sono e cabeceei no estuque deste vão de escada.

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Imagem - minha mão em Praga, 2009

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