20200501

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CRÓNICA CÓNICA 1.0
compras nos supermercados em tempos de covid19



















É tudo uma questão de distâncias. Ao sair de casa, neste tempo de pandemia, é mais importante manter as distâncias do que insistir nas aparências. Até porque o menos aparente é mesmo qualquer normalidade. Circulamos pela ruas e pelas avenidas como num bailado, como se descrevêssemos o acasalamento ritualizado de um par de pássaros que se vão medindo e entreolhando à distância, em crescentes voluptuosidades, amontoando piares e seduções a roçar o insuportavel. Piu, piu, dois metros, um metro, metro e meio. Mantém, mantém-te. Equidistantes na corte. Uma nova geometria para circular nas cidades inteiras. 

Como é que um pássaro mede a distância deste para aquele beirado, enquanto saltita entre um e o outro, peripatético; como é que um felino se apercebe da distância de si até à presa desejada, para melhor calibrar o salto; como é que mantemos a distância constante entre nós e o outro ao perambular assim pela rua? Das coisas mais complicadas, nesta orquestração espacial, é mesmo o fazer compras no supermercado. Não é tanto pelas filas que se formam para entrar no super ou no hiper, processo em que me vi a viajar um par de décadas até à adolescência, em que a filtragem era por número e equilíbrio de género à entrada da discoteca. O complicado é a manutenção das distâncias dentro de um espaço de coxias rasgadas a régua e esquadro que nos habituáramos a percorrer, ziguezagueando despreocupadamente entre expositores, escolhendo e analisando produtos e marcas com as mãos. 

O aparato do toque tornou-se complexo, cada gesto e cada escolha uma luta de ponderações. Levar o fruto e o tubérculo assim que neles se toca, depois da irremediável escolha pelo olhar, é um novo hábito. Já não há regras dos 15 segundos, se toca, é levar. Também não se pode abdicar de rodar as embalagens para estudar os ingredientes, mas é fazê-lo protegido. Tocar nos sacos, nos carros, no pão, o transporte dos artigos, o processo de pagamento e a recolha do talão e outros sei-lás, dezenas de pormenores que nos passavam ao lado, por irrelevantes e automáticos, têm agora que ser reconsiderados. O afã consumista reduzido a um lufa-lufa de preocupações nos seus detalhes. Já todos o dizem, o Demónio ocupou o lugar de Deus nos detalhes. 

Aparece então alguém ao fundo do corredor caminhando em sentido contrário, um pequeno pânico, imaginamos logo um duelo pelo espaço, como numa cidade do Faroeste. Duas opções se apresentam: bater em retirada ou passar por ele de lado, em movimentos de caranguejo. De todas as maneiras fica o sabor da derrota. Viral. E todo o equipamento: viseiras, luvas, máscaras, desinfectante, álcool gel, álcool. Circulamos com segundas peles para uma dose-extra de protecção. Até um simples encontro de olhares é uma quase violência, que afastamos rapidamente, chocalhandos desculpas internas. Esta é uma nova ficção-realidade, uma culpa colectiva que não sabemos explicar ou expiar. A saída por mantimentos abre inúmeras possibilidades de entradas ao vírus, daí que se instalem ansiedades. Para uns quantos portugueses até será das poucas idas ao exterior, assume-se então como passeio higiénico. Há então que ser higienizado, também mentalmente. Temos andado a conter o mercado dos afectos e o aparato do toque. Não apenas na prática e nos hábitos, na nossa cabeça também. Até que se terminem os enlatados e vaguem as estantes das despensas e tenha que se empreender umas próximas compras numa pandemia perto de si.

imagem: SARS-CoV-2 em CAD

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